O problema ferroviário do Grande Porto (e do Norte)

Caros Colegas

Este texto pode não ser novidade para ninguém, como pode, pelo menos para mim, ser uma agradável surpresa sobre um tema que penso que cada um de nós, e acredito que pouca gente nunca tenha andado de comboio (mais não seja para passear), terá forçosamente que ter uma opinião. Pessoalmente acho que tudo o que tem sido feito a respeito das ferrovias, falando do sítio de onde conheço melhor a situação como assíduo passageiro que fui (já não sou tanto), uma tremenda desgraça, desprovida de sentido, de valor técnico e que realmente me faz questionar sobre se as pessoas que trabalham nesta área e que decidem (ataco essas em concreto) sabem mesmo o que fazem, se lêem e olham para os bons exemplos, se consultam os técnicos qualificados, se são isentas e trabalham em prol de um melhoramento efectivo do país, pois as ferrovias têm um papel importante no mesmo.

Uma última menção para o Nuno Gomes Lopes que têm feito um trabalho interessante no seu site que aconselho vivamente toda a gente a visitar.

Aqui vai o artigo, podem descarregá-lo também em PDF aqui .

"Mapa Torto"


Não que fosse novidade para mim, era aliás tema de debate mental há algum tempo já, mas o grito de alerta surgiu quando me disseram: A minha mãe quer ir de Estarreja a Guimarães e o comboio demora três horas. Claro que isto não é toda a verdade – dá para reduzir o tempo de percurso a uma duração mais aceitável – mas como a CP estipula um tempo mínimo para os transbordos (10 minutos?), os percursos propostos pela transportadora apenas incluem viagens com transbordos superiores ao mínimo fixado.
Parti deste mapa como início de reflexão (sistema de transportes ferroviários do Ruhrgebiet, a maior concentração populacional da Alemanha):



Não é uma comparação direta entre a zona do Ruhr e o Norte Litoral – enquanto que uma, na sua totalidade, comporta mais de 10 milhões de habitantes, a outra tem pouco mais de 4 milhões, e com densidades bastantes diferentes -, mas antes o assumir do sistema alemão como modelo para o desenvolvimento de um modelo de transportes mais integrado e, acima de tudo, mais racional.
Por incrível que pareça, existe no modelo alemão de serviços ferroviários (que não de longo-curso) alguma semelhança com o sistema português. O S-Bahn alemão tem como equivalente o Urbanoportuguês; o Regionalbahn é como o Regional da CP; e o Regional-Express é primo do InterRegional português. As semelhanças ficam pelos nomes. O sistema alemão é bastante claro: o S-Bahn cobre distâncias entre os 20 e os 100 kms; o Regionalbahn une pontos a distar 50 a 100 kms entre si; e oRegional-Express opera em distâncias entre os 100 e os 200 kms. Enquanto que o S-Bahn existe apenas nos eixos com maior densidade populacional, os outros dois cobrem toda a rede ferroviária alemã.
Na rede portuguesa não existe tamanha clareza. Apesar de também existirem comboios Urbanos em Coimbra, apenas Lisboa e Porto constituem redes com nome próprio. A diferença entre este e o sistema alemão é abissal – enquanto que os S-Bahn alemães servem eixos com grande procura, os comboios portugueses ligam os subúrbios ao centro de Lisboa e do Porto.
Os portugueses Regional e InterRegional servem eixos de baixa procura, caso das Linhas do Minho (a norte de Nine), do Oeste e do Algarve, todas as linhas do interior e as linhas de bitola métrica (Vouga, Tua, Tâmega e Corgo). Normalmente utilizam veículos por modernizar, sem ar-condicionado e incapazes de acelerar a sério. Um serviço de remedeio. Mais uma vez, nada a ver com o exemplo alemão. Os bahndos nossos camaradas são modernos e rápidos (alguns atingem mesmo os 200 km/h) e servem tanto eixos de menor procura como eixos urbanos. E um serviço regional pode ligar duas cidades importantes a 100 km de distância, cruzando pelo caminho uma cidade com maior importância. Mais uma vez, nada que ver com o sistema português. Por cá, o comboio faz sempre término quando atinge a cidade de maior importância (exemplos: Entroncamento-Porto_Campanhã, Régua-Porto_Campanhã).
Outra das diferenças, uma artificialidade criada aquando da separação da CP em unidades de negócio, foi a ideia da concorrência. Considerou-se na CP que as duas únicas unidades a alguma vez terem lucro seriam o longo-curso e o curto-curso (neologismo acabado de inventar), arredando à partida qualquer ideia de sustentabilidade económica dos médio-curso, atirados para eixos pouco competitivos e com parco investimento na modernização da linha e das composições. Assim, nos eixos suburbanos modernizados recentemente no norte litoral (a Linha do Norte, a Linha do Minho e a Linha do Douro) mantiveram serviços regionais; os ramais de Braga e de Guimarães, que ligam estas cidades à Linha do Minho (e sem ligações a montante das cidades), deixaram de ter Regionais e InterRegionais para passarem a ter apenas Urbanos (com destino ao Porto) e Alfas e InterCidades (com destino a Lisboa). Nas Linhas do Minho e do Douro, o Urbano cresceu à custa do serviço regional, e nasceu o paradoxo de ligações regionais vindas da Régua e de Viana terem término em, respetivamente, Caíde e Nine, para daí seguirem em Urbanos para o Porto. Assim o volume de passageiros dos Urbanos do Porto teve um aumento artificial, e os utentes do serviço regional perderam qualidade de serviço, com a adição de transbordos e acumulação de passes. Uma atitude irresponsável e imperdoável da direção da CP em Lisboa, que já terá custado a perda de inúmeros clientes para o transporte individual.
Qualquer um dos exemplos citados anteriormente não existe nas redes alemãs. Nunca um comboio vindo de Köln faz término nas imediações de Dortmund – ou faz término na Hauptbahnhof de Dortmund ou passa nesta, seguindo para outros destinos. Voltando à rede portuguesa, e centrando-nos no Grande Porto, ocorre outra situação inexistente na Alemanha.

A Estação das Devesas, em Gaia, tem uma grande procura de passageiros. Será, juntamente com General Torres, uma das duas estações do concelho de Gaia com maior procura. Olhando para o diagrama, Gaia nem sequer aparece. O meu critério foi representar apenas entroncamentos de vias e estações de término de composições, o que não é o caso das Devesas. A minha pergunta inicial foi a seguinte: sendo as Devesas uma estação tão importante e central como Campanhã, como é que nas Devesas nenhum comboio faz término e em Campanhã fazem todos (excetuando os que seguem para São Bento)? Exato: por nenhuma razão prática ou logística ou o que for. Acontece que, ao contrário do sistema alemão, os Urbanos portugueses não servem eixos mas sim destinos. E, motivado por esta decisão arbitrária, nenhum comboio de curto ou médio-curso vindo do norte ou da Linha do Douro segue para sul de Campanhã, nem nenhum comboio regional ou Urbano vindo da Linha do Norte segue para norte de Campanhã. A razão de tudo isto? A ‘extrema simplificação’ que ocorreu nos serviços da CP nos últimos anos. Os principais prejudicados? Os clientes.
Por causa desta revolução organizativa, as bilheteiras universais foram varridas do mapa, substituídas por ‘bilheteiras de Urbanos’, e as outras. Antes, e mesmo sem energia elétrica e apenas com um lápis e um papel, era possível, no Pocinho ou em qualquer outra estação, comprar um bilhete direto entre esta terra e, digamos, Guimarães. Agora, com a informatização e a divisão em serviços, é um pouco mais difícil, quando não impossível (acho que impossível será a palavra certa) (a alusão ao Pocinho e à inexistência da energia elétrica veio de não sei de onde, perdão ao autor).
Pesquisando pdfs e a página da CP fui elencando as tipologias de serviço da CP à volta do Grande Porto (Urbano, Regional e InterRegional) e, dentro destas, os serviços existentes (origem-destino), e cheguei ao saboroso número de 29. 29!!! O que significaria que esta zona, para além de ser a mais populosa do país, seria também a melhor servida por serviços ferroviários de curta e média distância. Sim? Não. Não, não é bem servida. É terrivelmente mal servida. E os números apenas deslumbram à primeira; olhando com mais atenção, apercebemo-nos do mal:

Podemos começar a visita pelo caos e horror que é a ferrovia no Grande Porto pela recém-reaberta Linha de Leixões. As mercadorias continuam a circular de todo o país para o Porto de Matosinhos, mas os passageiros circulam apenas entre Ermesinde e Leça do Balio. Nem mais. Um serviço de caminho-de-ferro com a extensão de 10 kms que circula pelos arrabaldes do Porto sem ligar qualquer centralidade, como já referi antes por aqui. Parece que finalmente haverá uma ligação a Campanhã(via concordância de São Gemil-Contumil), o que já não será mau.
Continuando, num dos extremos do serviço regional do Douro existem ligações em urbanos e regionais entre Penafiel e Marco de Canaveses, entre este e Caíde e entre cada um destes e São Bento. Logo aqui surgem 4 serviços que poderiam facilmente ser substituídos por um (admito que a zona não seja fácil, com o eixo de Urbanos a seguir até ao Marco de Canaveses e a eletrificação, linha dupla e modernização apenas até Caíde). Existem também Urbanos (!) entre Ermesinde e Campanhã (!!). Mais a norte, há um Regional entre Viana e Nine (!!!) e um Urbano entre esta (Nine, essa grande metrópole do noroeste peninsular) e Braga. E o que dizer do Urbano entre Guimarães e Lousado? E do Urbano entre o Porto e a Granja, a apenas uma estação de Espinho?
Eu sei que esta é uma análise relativamente superficial. Sei, por exemplo, que parte das composições que partem do Pocinho seguem diretamente para o Porto, sem necessidade de transbordo. Mas eu sei isso por ter utilizado a linha durante alguns anos. Qualquer outra pessoa que consulte os horários não tem essa perceção. Existem, por isso, dois fatores a considerar nesta questão: os transbordos, desagradáveis, incómodos, que fazem perder tempo e qualidade à viagem e desmotivam parte dos utilizadores; e a perceção pública do serviço. E esta não é uma questão a desprezar, nada disso. Se eu, morando em Estarreja, souber que na estação param Urbanos, Regionais e InterRegionais dirigidos a São Bento, Valença, Braga, Régua, Guimarães, Viana do Castelo, Aveiro, Figueira da Foz e Coimbra, em ligações rápidas e modernas, não terei toda a vontade de utilizar o comboio? Hoje em dia, querendo ir para sul, existe apenas um Regional a parar em Estarreja (circula de madrugada entre Campanhã e o Oriente) e os Urbanos para Aveiro. No sentido contrário, apenas Urbanos destinados a São Bento ou Campanhã e um Regional madrugador e um InterRegional destinados a estas estações. As opções são mínimas, e qualquer destino fora do eixo Aveiro-Campanhã obriga sempre a transbordos parvos.
Já que a CP não faz o trabalho-de-casa, dei-me eu ao trabalho de reformular toda esta salgalhada. Cheguei a um número de serviços (24) que poderá ser excessivo, mas que garante a melhoria da mobilidade em grande parte da região:

E o pormenor do centro:

Conclusões:
1- Se o destino é o Porto, o destino é São Bento. Centro, ponto final.
2- Trabalhando no contexto de eixos (e não de destinos), os comboios deverão passar a fazer *apenas* paragem em Campanhã, e não término. Que não justifiquem tantos términos em Campanhã apenas pelos cais terminais que lá construíram para os comboios de médio-curso.
3- Os serviços Regional e InterRegional deverão ser reabilitados e modernizados, assim como parte das linhas onde circulam hoje em dia, arcaicas em grande parte.
4- Linhas, como é o caso dos ramais de Guimarães e Braga, onde circulam apenas comboios de curto-curso e de longo-curso, são linhas incompletas. Necessitam dos médio-curso do Regional e InterRegional.
.
.
.
Nota 1: eu sei que os desenhos são feios. São, digamos, “desenhos de trabalho”.
Nota 2: aqui está o pdf da rede de serviços atual, e aqui o pdf da rede proposta. Aconselho os caros leitores a procurarem a caixinhas com as camadas, onde poderão deliciar-se ligando e desligando linhas a seu bel-prazer.
Nota 3: apenas aponto serviços a criar, eliminando os serviços existentes. Não digo nada sobre quantos destes serviços existirão em cada estação diariamente nem o número de paragens ou o tipo de ligação a estabelecer. Isso dependeria de estudos de procura e da análise da utilização desses serviços.
Nota 4: Apesar de existir uma ligação diária entre Estarreja e Guimarães em uma hora e quarenta e três minutos, conjugando Urbano e InterCidades, esta reflexão ignorou-a. Não falei do longo-curso (Alfa Pendular e InterCidades) mas apenas de ligações abaixo dos 200 kms. Urbano, Regional e InterRegional. Isto porque os problemas regionais têm de ter uma resposta regional. Não se pode esperar que as ligações a Lx resolvam, só por si, os problemas de mobilidade interurbana. Não falei também da construção de linhas novas (necessárias) nem da situação das linhas de bitola métrica (3/4 das quais atualmente desativadas, mas com um futuro a apontar para a sua integração na rede de bitola convencional).
Nota 5: sei bem da sobrecarga a que estão sujeitos alguns dos troços em questão. O que proponho é a substituição de parte dos serviços Urbanos por serviços Regional e InterRegional, e mesmo a utilização de parte das composições utilizadas nos Urbanos para esses serviços.
Nota 6: não incluí no mapa da rede atual o Regional Lisboa-Porto. Acabei de o descobrir.
Nota 7: Existe  aqui o pdf da rede de serviços proposta corrigida. bem-haja.



0 comentários:

Enviar um comentário

 
Copyright © MSIGOT